O Conselho Universitário (Consu) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aprovou, por unanimidade, o princípio de cotas raciais nos cursos de graduação no fim da tarde desta terça (30). Isso significa que a instituição reconhece a necessidade de alteração da política de ingresso nos cursos de graduação para inclusão de cotas para pretos, pardos e indígenas, e que criará um Grupo de Trabalho (GT) para elaborar uma proposta que inclui a implementação progressiva de cotas raciais e o vestibular indígena, a ser colocada em prática a partir de 2018 (para ingresso em 2019).
Segundo o coordenador do Diretório Central de Estudantes (DCE), Guilherme Montenegro, uma proposta de implantação da política de cotas raciais deverá ser apresentada até 21 de novembro. “Essa aprovação não é o fim da discussão sobre cotas, mas o começo de tudo, de como combater o racismo institucional na universidade”, comemora Montenegro.
Conforme o documento, esse GT deverá ser composto por treze membros: dois da Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest); dois do GT que realizou Audiências Públicas sobre cotas em 2016; três do Consu; dois professores da graduação; dois membros do movimento negro estudantil (Frente Pró-Cotas e Núcleo de Consciência Negra); um servidor técnico-administrativo e um estudante.
O cronograma prevê que a proposta de implementação gradativa de cotas étnico-raciais será submetida à discussão nas unidades de ensino, que poderão sugerir alterações antes da votação final no Consu.
A criação do GT para discussão das cotas na universidade e realização de audiências públicas sobre o tema foi o principal item da pauta negociada com a Reitoria para o fim da greve dos estudantes, ocorrida entre maio e agosto de 2016 –e considerada pelo movimento estudantil como a maior da história da universidade.
Entre as três universidades estaduais –Unicamp, Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual Paulista (Unesp)–, somente a última possui um sistema de cotas raciais na graduação, iniciado no vestibular de 2014.
Desde 2004, a Unicamp tem o Programa de Ação Afirmativa para Inclusão Social (PAAIS), um sistema de bonificação para alunos de escolas públicas e pretos, pardos e indígenas (PPIs), parecido com o Inclusp-USP; e também o Programa de Formação Interdisciplinar Superior (Profis), criado em 2011, que oferece uma vaga para cada escola pública de Campinas ao aluno que obtiver a melhor classificação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Debate começou em 2016
A adoção das cotas étnico-raciais na graduação da Unicamp foi proposta, inicialmente, pelo GT, que realizou as três audiências públicas sobre o tema em 2016, com ampla representação de movimentos sociais e contribuições de pesquisadores, mas baixíssima participação dos membros do Consu (de 65, apenas treze foram a pelo menos uma AP). Delas, saiu a proposta aprovada hoje, que leva em conta que a maioria dos participantes do PAAIS não é de família de baixa renda.
De acordo com análise do professor João Feres Júnior, 30% dos alunos beneficiados pelo PAAIS em 2016 possuíam renda familiar entre cinco e dez salários mínimos; 10,56%, entre dez e 20 salários; e 1,49% acima de vinte salários mínimos. A ineficácia do programa para inclusão socioeconômica e racial na Unicamp foi a principal crítica do GT e argumento para que ele fosse substituído pela política de cotas.
“No último vestibular, em que se viu o auge do PAAIS, a inclusão de negros foi de menos de 23%, enquanto a porcentagem de negros no estado de SP é de 37,2%. É necessário adotar cotas para democratizar a universidade”, avalia Teófilo Reis, doutorando em Sociologia e integrante do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp (NCN) que participou do GT.
Conforme divulgado pela Reitoria, 52% dos aprovados no vestibular 2017 são provenientes da rede pública (PAAIS), dos quais 32,9% PPIs, mas entre todos os aprovados (PAAIS e ampla concorrência) o percentual de PPIs cai para 22,7%.
“Há problemas sim, dificuldades, mas que irão aparecer em outros modelos também. Por isso que gosto muito da ideia de ter modelos diversificados. Essa questão da renda vai aparecer também em uma política de cotas porque privilegia quem teve oportunidade de fazer um cursinho, de estudar em uma escola melhor. É inevitável. O PAAIS tem dificuldades saneáveis. É pioneiro e tem cumprido seu papel”, considera o reitor, Marcelo Knobel.
Combate ao racismo
A Deliberação Consu prevê, ainda, a atuação da Reitoria para promover a qualidade do ensino, diminuir os índices de reprovação e evasão na graduação (evasão foi de 6,82% em 2015, conforme Anuário Estatístico da Unicamp); e a criação de uma Secretaria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade, destinada à formulação, implementação e gestão das políticas de ação afirmativa e combate a qualquer forma de preconceito na universidade. Mais investimentos em ações de permanência e a criação dessa Secretaria atendem à reivindicação do movimento negro e estudantil da Unicamp e também constam da negociação com a Reitoria (administração anterior) para o fim da greve de 2016.
Em 2016, pichações com conteúdo racista surgiram em paredes do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) logo após o ingresso dos primeiros cotistas em cursos de pós-graduação do Instituto. As cotas étnico-raciais para ingresso no mestrado e doutorado também foram adotadas na Faculdade de Educação da Unicamp no processo seletivo de 2016, e está em discussão em outros Institutos – no caso da pós-graduação, essa decisão é independente do Consu.
As pichações racistas se repetiram no IFCH até o início desse ano e não se tem notícia de investigação dessas ações pela universidade. “Não tenho conhecimento [se foram investigadas] porque não foram na minha gestão, mas certamente precisam ser investigadas”, disse Knobel.
Já quanto ao dossiê com denúncias de racismo contra alunos, encaminhado pelo DCE na gestão anterior da Reitoria e reencaminhado na atual, o atual reitor disse que, até pouco tempo, não tinha conhecimento. “Pedi que nos entregassem outra cópia. Procuramos aqui e não achamos. Não havia nenhum registro da administração anterior. Encaminhei pra Procuradoria Geral, que está avaliando quais medidas podemos tomar”, explicou.
Perseguições
Por outro lado, o DCE e outros coletivos denunciam que alunos que participaram da greve estudantil de 2016 estão sendo perseguidos politicamente por meio de investigações e punições infundadas. Também apontam a possibilidade de racismo nesses processos, já que a maioria dos investigados são negros.
Um exemplo é o próprio coordenador do DCE, Montenegro, penalizado com suspensão por dois semestres, além de perda ao direito à moradia estudantil e atraso curricular. “Caracteriza perseguição política porque trata de um movimento coletivo que aconteceu aqui na Unicamp, e a Reitoria tratou de individualizar os processos. Eles focaram em alguns participantes do movimento, principalmente integrantes do DCE e de Centros Acadêmicos, com esse caráter racista”, diz Montenegro. “A partir dessa lógica da meritocracia, a Unicamp aceita que poucos negros consigam passar pela dura barreira do vestibular, e os pune quando eles lutam por outro projeto de universidade”, acrescenta .
O estudante Teófilo Reis confirma a tese de que a perseguição está sendo racista:
“A quantidade de estudantes negros que são alvo dos processos referentes à greve está muito acima da proporção de negros no corpo discente da Unicamp. Nota-se que as investigações estão sendo focadas preferencialmente em estudantes negros, com as mais esdrúxulas acusações. Isso se configura como racismo institucional”.
Knobel discorda da avaliação dos estudantes. “Como reitor, posso negar veementemente qualquer forma de racismo institucional. Toda forma de preconceito tem que ser combatida. Sobre sindicâncias e eventuais punições, tem um Regimento, e ele deve ser cumprido. Quando alguém discorda do resultado, tem direito de entrar com recurso”, responde.
O reitor acredita que a criação da Secretaria, prevista na proposta aprovada no Consu, pode contribuir em casos como estes, mas enfatiza que já existem canais para esse tipo de reclamação, como a Ouvidoria.