Entrevista

Jornada feminina gira em torno de 54 horas semanais

Economista e pesquisadora do Dieese/RS aborda as opressões e também principais conquistas feministas no mundo do trabalho

Imprensa SMetal
Divulgação
Cristina Vieceli é economista e pesquisadora do Dieese/RS. Ela traz dados sobre as desigualdades do mundo do trabalho sob a ótica feminista

Cristina Vieceli é economista e pesquisadora do Dieese/RS. Ela traz dados sobre as desigualdades do mundo do trabalho sob a ótica feminista

No mês das mulheres o site do SMetal trará uma série de entrevistas e reportagens sobre os desafios das mulheres frente aos recortes da sociedade, marcados por desigualdades, relações de opressão e exploração, além de normas culturais preconceituosas.

Nesta quinta-feira, dia 1, a entrevistada é a economista do Dieese do Rio Grande do Sul (RS), Cristina Pereira Vieceli, uma das autoras do livro “Emprego doméstico no Brasil: raízes históricas, trajetórias e regulamentação” (LTr).

Ela traz dados sobre segregação do mercado de trabalho, avanços com a Lei de 2015 sobre emprego doméstico, as conquistas feministas a partir dos anos 2000, os problemas decorrentes da diminuição da presença do Estado, entre outros dados importantes.

É comum ouvir que as mulheres entraram no mercado há pouco tempo. Mas antes as mulheres não contribuíam com a economia do Brasil?

Cristina Vieceli: As mulheres sempre contribuíram com a economia do Brasil, estando dentro ou fora do mercado de trabalho formal. Os afazeres domésticos não remunerados e as atividades voltadas para os cuidados de pessoas, que compreendem os trabalhos reprodutivos são historicamente exercidos principalmente por mulheres. Essa relação se perpetua até hoje, a última pesquisa realizada pela PNAD sobre os afazeres domésticos indica que elas dedicaram em 2016, em média, 20,9 horas semanais às atividades de cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos, quase o dobro da média masculina, de 11,1 horas semanais.

Somadas as atividades voltadas para o mercado de trabalho com os afazeres domésticos e de cuidados, a jornada feminina total gira em torno de 54 horas semanais, enquanto a masculina totaliza 51,5 horas. Ou seja, temos menos tempo para dedicarmos às atividades de lazer e cuidados pessoais.

Quais são as principais desigualdades que atingem as mulheres no mercado de trabalho?

O mercado de trabalho é caracterizado pela segregação horizontal, ou seja, define-se quais são as atividades masculinas e femininas, e vertical, que é a desvalorização dos trabalhos femininos, em termos de remuneração e oportunidades de ascensão à cargos de liderança.

Dessa forma, verificamos que as mulheres estão mais inseridas em atividades de baixa remuneração e menor proteção social, como o emprego doméstico, em setores específicos, como nas atividades de serviços.

Além disso, mesmo em ocupações com maior escolaridade recebemos menores salários. O rendimento médio das mulheres, segundo a PNAD/IBGE de 2016 era 13% inferior ao masculino, diferenças que se aprofundam conforme o aumento da escolaridade, dentre aquelas com “Ensino Superior Completo ou mais” a diferença salarial chehou a 36%.

O fato das atividades domésticas e de cuidados não terem sido assumidas pelos homens e nem de forma suficiente pelo Estado por meio dos serviços públicos, leva às mulheres a permanecem sendo as principais responsáveis por esses serviços, seja de forma remunerada, ou não remunerada. Essa sobrecarga irá impactar na inserção feminina no mercado de trabalho, já que elas irão se inserir em ocupações com jornadas menores, mais flexíveis e instáveis.

Essas desigualdades aumentaram nesses últimos anos ou vem regredindo?

Os anos 2000 foram marcados pela criação de postos de trabalho formais principalmente no setor de serviços, que foram ocupados em sua maior parte por mulheres negras.

Nesse período houve também um aumento da escolaridade e remuneração, o que foi muito influenciado pelas políticas públicas em que se destaca a de valorização do salário mínimo. As cotas raciais e políticas de financiamento estudantil foram importantes para a população negra ingressar nas universidades e em ocupações com maior remuneração e proteção trabalhista.

Por outro lado, permacem características estruturantes do mercado de trabalho, que é a dificuldade de alcançarmos os mesmos níveis hierárquicos que os homens, denominado pela literatura feminista de “Teto de Vidro” e a dificuldade de sairmos de postos de trabalho de menores remunerações, o chamado “Chão Pegajoso”.

Essa estrutura está relacionada tanto com a organização patriarcal da sociedade que é determinante na definição dos espaços ocupados por homens e mulheres, mas também se relaciona com o sistema capitalista em sua fase neoliberal, onde, por um lado, as mulheres estão sendo mais demandadas para as atividades no mercado, e, por outro, as atividades domésticas estão cada vez mais sendo demandadas para os núcleos familiares e indivíduos, o que afeta principalmente na trajetória das mulheres de baixa renda no mercado de trabalho.

Não conseguimos alterar radicalmente essa estrutura nas últimas décadas, por isso as mudanças foram parciais e podem regredir.

Mobilização e união no combate à violência

Nos anos 2000 avançamos em algumas questões importantes, fruto da luta das feministas. O combate à violência doméstica e a disponibilização de dados sobre as questões de gênero se intensificou com a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres em 2003 (que perdeu o status de ministério em 2015), a Lei Maria da Penha de 2006 e a Lei do Feminicídio de 2015.

A questão do feminismo ganhou maior espaço no debate público, em agendas de pesquisa e na mídia com destaque para a ascenção movimentos feministas de minorias. No entanto, ainda temos muito o que avançar em questões bastante antigas, como os direitos reprodutivos e a violência de gênero que afetam a trajetória de vida das mulheres.

Esses avanços só ocorrerão com maior participação política feminina, no que o Brasil vai muito mal. Segundo dados do Banco Mundial em 2016 somente 9,9% do total de parlamentares brasileiros eram mulheres, em países de renda média, este percentual é de 21,1%, é o pior índice dentre os países da América Latina e Caribe. Entre os anos de 2000 a 2016 a participação feminina no parlamento nos países de renda média avançou 9,1 pontos percentuais (p.p) no Brasil a variação foi de 4,2 p.p no mesmo período, ou seja, precisamos ampliar profundamente a democracia participativa no país.

Em relação ao emprego doméstico nota-se uma melhora em relação ao respeito e dignidade após a legislação?

A Lei Complementar 150 de 2015, representou avanços importantes, em que se destacam o direito ao FGTS, seguro desemprego e a regulação da jornada de trabalho. Porém, permaneceu a diferenciação dos direitos em relação aos demais trabalhadores, a exemplo da regulamentação da fiscalização no local de trabalho e garantia da seguridade social.

Além disso, as empregadas diaristas que trabalham até dois dias por semana na casa do empregador foram legalmente excluídas da proteção da lei.

A comoção contra a lei de 2015 por parte de uma parcela da classe média demonstra a permanência de relações escravocratas atualmente, e externalizou os preconceitos de classe e raça que perduram na sociedade. O Brasil é o país com maior número absoluto de empregadas domésticas no mundo, cerca de sete milhões de trabalhadoras, sendo maioria negra.

Apesar da grande importância para o trabalho das mulheres, o emprego doméstico foi excluído de diversos direitos trabalhistas ao longo da história, inclusive em momentos marcantes como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943 e a Constituição Federal de 1988.

Os direitos das empregadas domésticas foram conquistados paulatinamente a partir de muita luta, das associações, sindicatos e federações. A Lei de 2015, portanto é fruto dessa luta, mas ainda assim é uma conquista parcial.

O que se nota nos dados sobre o emprego doméstico é que nos anos 2000 houve uma mudança profunda nesta ocupação, as empregadas domésticas tornaram-se mais escolarizadas, mais velhas, melhor remuneradas e aumentou a formalização. As filhas, netas e bisnetas de empregadas domésticas deixaram de receber essa profissão como uma herança, que veio da época da escravidão, e passaram a optar por outras ocupações com maior nível de escolaridade, principalmente no setor de serviços. Essa tendência, levaria a sociedade à repensar a forma como o trabalho reprodutivo é ofertado pelo Estado e pela sociedade, valorizando o trabalho doméstico. Com a crise econômica e as políticas de ajuste financeiro, no entanto, a possibilidade é de reversão da tendência anterior o que já vem acontecendo com o reingresso de mulheres ao emprego doméstico.

Com a crise política e econômica dá para se afirmar que as mulheres perderam mais postos de trabalho em relação aos homens?

As mulheres são mais afetadas pelas crises econômicas, além disso, com a diminuição da presença do Estado aumenta a demanda pelos trabalhos não remunerados. A invisibilidade dos trabalhos domésticos penaliza principalmente as mulheres, levando muitas meninas deixarem de estudar e trabalhar. A exemplo disso, em 2016, 34,6% das jovens entre 16 a 29 anos afirmaram que o principal motivo de não estarem estudando ou trabalhando era porque precisavam “cuidar dos afazeres domésticos, dos filhos ou de outros parentes”, este percentual entre os jovens homens foi de 1,4%.

Taxa de desemprego feminina e precarização

No período de crise e ajuste fiscal houve um forte aumento do desemprego tanto em relação às mulheres como entre os homens, no entanto, as mulheres, pela sua posição mais precária no mercado de trabalho, foram mais atingidas. A exemplo disso, em 2014, segundo dados da PNADC do IBGE a taxa de desemprego feminina era de 7,7%, passando para 13,4% em 2017, um aumento de 5,29%. Já entre os homens, a taxa passou de 5,6% para 10,5%, o que representa um crescimento de 4,64%.

Concomitante ao aumento do desemprego houve uma elevação da precarização do mercado de trabalho. Os setores mais afetados pela crise foram os majoritariamente masculinos em especial a indústria e a construção civil.

Por outro lado, houve um aumento em ocupações precárias, como o emprego doméstico e nos setores de serviços, em que as mulheres são maioria.

À semelhança do que ocorreu nos anos 1990, os homens passaram a pressionar os setores com predominância feminina, como o serviços e comércio. Os últimos dados do Ministério do Trabalho e Emprego, indicam que em 2017, houve um decréscimo de -20.832 postos de trabalhos formais no Brasil.

Essa queda ocorreu devido à diminuição de 42.526 vagas entre as mulheres, quanto aos homens, houve um crescimento de 21.694 postos formais. O crescimento no número de vagas de trabalho masculinas ocorreu nos setores de comércio, serviços e agropecuária, a indústria e construção civil permaneceram fechando postos. No caso das mulheres, houve uma elevação somente no setor agropecuário, elas foram responsáveis por 97% das demissões na indústria.

A subutilização da força de trabalho

Outra característica do mercado de trabalho recente é o aumento da taxa de subutilização da força de trabalho, em que as mulheres também são maioria e apresentaram maior crescimento. Em 2014, a taxa de subutilização da força de trabalho feminina, segundo a PNADC/ IBGE era de 18,2%, passando para 28% no último trimestre de 2017, o que corresponde a uma variação de 8,29%. No caso dos homens, as taxas passaram de 12,3% para 19,8% no mesmo período, uma variação de 6,68%. Esse indicador mensura as pessoas que estão no mercado de trabalho e gostariam de trabalhar mais horas, as pessoas desocupadas, e aquelas que gostariam de trabalhar, mas que não procuraram emprego, ou que não procuraram emprego e gostariam de trabalhar.

Se fosse aprovada, a Reforma da Previdência afetaria as mulheres? De que forma?

A Reforma da Previdência impacta toda a classe trabalhadora, especialmente para aquelas e aqueles que estão em posições mais vulneráveis no mercado de trabalho, em que se encontram as mulheres, e os/as trabalhadores/as rurais. Em relação especificamente às mulheres, os maiores impactos ocorrem pelas características da trajetória feminina no mercado de trabalho, em que pese a presença feminina em ocupações de baixas remunerações, que são vistas como uma extensão do trabalho doméstico não remunerado, como educação, saúde, serviços sociais e o emprego doméstico; somos mais afetadas pelo desemprego e crises econômicas, e somos maioria nas taxas de subutilização da força de trabalho, conforme comentado anteriormente.

Essas características afetam na capacidade feminina de manterem contribuições constantes, exemplo disso é que a aposentadoria por idade é a modalidade mais comum entre elas. De acordo com o Anuário Estatístico da Previdência Social, em 2015, as mulheres correspondiam a 62,6% do total das aposentadorias por idade, dentre as aposentadorias por tempo de contribuição elas correspondiam somente a 30,3%. Além disso, os valores das aposentadorias das mulheres são bastante baixos. Em dezembro de 2015, os benefícios das mulheres giravam em torno de R$954,78, o que corresponde a 76% dos benefícios masculinos.

A discriminação sofrida pelas mulheres no mercado de trabalho que motivou a diferenciação de idade entre homens e mulheres pelo regime vigente. A previdência social, portanto, funciona como uma compensação às discrepâncias do mercado de trabalho e representa uma forma de diminuir as desigualdades e distorções sociais no país.

A reforma penaliza

Mesmo com as mudanças propostas na lei, que, entre outras, diminuiu a idade mínima necessária das mulheres de 65 para 62 anos, a Reforma da Previdência penaliza fortemente as mulheres. Isto porque a fórmula de cálculo, a partir da média de todas as contribuições, diminui o valor do benefício. Além disso, o aumento de 15 para 25 anos de contribuição como mínimo para gozar do benefício poderá excluir muitas mulheres da previdência social, já que a trajetória feminina no mercado de trabalho é marcada pela instabilidade. Este cenário tende a piorar com o aumento do desemprego e do subemprego.

Distorções no discurso oficial

Chama à atenção os argumentos oficiais apresentados na reforma para, primeiramente equiparar as idades de aposentadoria entre homens e mulheres, e, em um segundo momento as aproximar.

O governo indica que estamos alcançando a igualdade no mercado de trabalho, e que o trabalho doméstico não representaria mais um sobrepeso às mulheres o que, conforme comentado, está totalmente alheio aos indicadores recentes.

Além disso, a situação tende a piorar com as demais reformas aprovadas, a partir da instituição do Novo Regime Fiscal, que congela as despesas primárias por 20 anos, e a Reforma Trabalhista, que flexibiliza as relações de trabalho diminuindo a capacidade contributiva das trabalhadoras e trabalhadores e ataca suas instituições representativas, como o movimento sindical e a Justiça do Trabalho. Essa política de ajustes, portanto, representa um grande descaso e violência à sociedade brasileira, levando ao aumento das desigualdades sociais e da pobreza.

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