Entrevista

‘Liberdade de imprensa não é desrespeito’, afirma líder islâmico

Para Ziad Ahmad Saifi, do CDIAL (Centro de Divulgação do Islam para a América Latina), chargistas franceses mexeram com o "sagrado"

ABCD Maior
Andris Bovo

Para líder muçulmano, franceses do Charlie Hebdo faltaram, repetidas vezes, com respeito com o Islã

Para Ziad Ahmad Saifi, vice-presidente do CDIAL (Centro de Divulgação do Islam para a América Latina), as charges do jornal francês Charlie Hebdo mexeram com o “sagrado”, mas não justificam as 12 mortes do último dia 7. O líder islâmico ainda criticou manipulação da mídia, argumentando que a versão contada é cheia de “furos”.
ABCD MAIOR – Como a comunidade islâmica entendeu e visualizou esse ataque ao Charlie Hebdo?
Ziad Ahmad Saifi – Existem fatos que realmente a mídia usa de uma forma chocante, trazendo à tona o sentimento do Ocidente. O que aconteceu é, na verdade, uma incógnita. Não sabemos realmente quem fez, quem planejou (o ataque). Que revista era essa e o que ela representa hoje? Eu acho que, em um mundo democrático, todos somos livres, mas o meu direito só começa quando termina o direito do outro. Temos um artigo muito importante na Constituição que fala sobre liberdade de crença, e que ninguém pode ofender outra pessoa pela raça, pela cor ou pelo credo. Então se vejo algo que é sagrado na religião do outro, eu não vou agredi-la. Acredito que para toda ação existe uma reação, não com violência… Nós temos que aprender que liberdade de imprensa não dá o direito de criar, ofender ou difamar. Infelizmente a gente vê a divulgação de muitas charges que eles promoveram, que mostram um pouquinho quem eles são. Não que seja justificável, sob hipótese alguma, mas são charges de muito mau gosto. Se fez (as charges), processa e manda parar. Não parou? O governo tem que agir!

O senhor acha que existem “furos” nessa história?
– Vocês viram o vídeo feito do alto do prédio? Os caras ficaram na rua, se abraçaram, levantaram a mão… não vão fugir? Um minuto a mais ou a menos faz toda a diferença, é a diferença entre ser preso ou não. Gritaram “nós vingamos o profeta”? A palavra ‘vingança’ não existe no Islã, e nem na língua árabe. O que eles realmente devem ter gritado? Não sabemos. Virou verdade absoluta pela mídia. E aí se fala que o sequestrador ligou para a polícia, disse que foi ele…Ninguém sabe se a voz é dele mesmo. Eu acredito em oportunismo da mídia. É uma estratégia americana. Aconteceu uma atrocidade, você vai lá e mata e não deixa a pessoa falar por que. E se for inocente? Executa e pronto.

O senhor diz então que acredita em uma certa perseguição da mídia pelo histórico, pela maneira como sempre retrataram o Islã?
– Quem domina os meios de comunicação no mundo dita a regra do jogo. É aquela coisa: quem ganha a guerra conta a história. Quando você fala em islamismo, de imediato vem alguma imagem na cabeça. Bin Laden, Arábia, terrorismo, homem de barba ou mulher de burca. Quem impôs essas imagens? Infelizmente, vemos que meios de comunicação se utilizam desses fatos para promover a desigualdade, a diferença entre as pessoas. O que difere você de mim, por exemplo, é apenas sua fé. Vinte dias atrás me questionaram: “Você viu? O mundo inteiro se levantou contra o terrorismo em Paris.” Eu vi, líderes mundiais como o Netanyahu (primeiro-ministro isralaense), que é culpado por massacrar centenas de crianças e mulheres palestinas; o Ibrahim (Keita, presidente), de Mali, culpado por executar milhares de pessoas do seu próprio povo. Achei irônico, terrorista falando de terrorismo?

Falou-se muito em liberdade de expressão. Como o senhor vê essa questão no caso do Charlie Hebdo?
– O ataque na França é uma prova de que liberdade de imprensa não é desrespeito. Um cristão me disse que não vê problema nas charges satirizando Jesus. Eu respondi: “Cada um vê e dá valor àquilo que é sagrado da maneira que quiser”. É fato que os personagens da religião islâmica são muito sagrados. Questionar as charges é direito nosso. Vale lembrar que as charges feitas são agressivas. Cheguei a ver uma com Jesus fazendo sexo com Deus. Por que o cristão se cala? Você pode fazer o que quiser, basta respeitar. A base da liberdade e da democracia é respeitar o próximo do jeito que ele é. Eu falo “não faça”, e você faz. “Ah, mas você não tem que atirar em mim, e sim me processar.” Eu digo: “Não, você que tem que me respeitar. Eu não preciso correr atrás do meu direito. Você tem que seguir a lei!”. A comunidade muçulmana quer que seja feita a investigação de forma honesta, honrosa, e acreditamos que ninguém tem direito de tirar a vida de ninguém à toa. A religião islâmica proíbe qualquer muçulmano de entrar em guerra, mas te dá o direito de defesa. Te proíbe de ir lá atacar, mas te permite se defender. Dentro da nossa crença, o princípio dela é a crença em Deus único, e não associá-lo e nem criar imagens. É a base da religião islâmica. Não reproduzimos nenhum tipo de imagem, nem de Deus, nem do profeta Jesus, nem do profeta Mohammed. Achamos isso ofensivo. É coerente, é respeitoso dizer: “Olha, ele não gosta, eu não vou fazer”. Em vez de promover a desigualdade, vamos promover a igualdade. Nós da comunidade muçulmana somos contra atos terroristas, somos contra assassinato de inocentes, somos contra promover a guerra. Temos 19 conflitos no mundo envolvendo muçulmanos e nós não estamos no país de ninguém, foram os outros que vieram invadir a gente. Ninguém foi aos EUA, eles que invadiram o Iraque. O conflito da Palestina é outro exemplo claro.

No ABCD, qual o tamanho da comunidade islâmica?
– Temos aproximadamente de 3 mil a 4 mil pessoas, em todo o ABCD. São cerca de 800 famílias.

E o que o senhor acha que muda na vida das pessoas esse tipo de acontecimento? A comunidade acaba sendo associada a esse tipo de ataque. Os muçulmanos relatam episódios de discriminação aqui?
– É triste quando a pessoa diz: “Eu ando de cabeça baixa hoje”. Ela não precisa andar de cabeça alta. Ela tem que andar igual a todo mundo, pois ela é igual a todo mundo. A diferença é na crença, apenas. De resto, é igual, a comida, a casa, tudo. Eu fico triste com esses relatos.
Esses atos atrapalham o dia a dia das pessoas da religião. Você pode estar no shopping, normalmente, e de repente encontrar uma pessoa que vai te falar algo para te desagradar. Mas eu vejo como passageiro pois o brasileiro é um povo muito aberto. No início a gente sente o baque, mas depois isso passa. A verdade pouco a pouco vem à tona.

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